Papo de bicicleta - Quando uma Caloi Ceci conta sua história

O ano era 1987, início de ano. Depois que apertaram todos os parafusos, encaixaram todas as peças, sopraram ar nos pneus, eu ganhei vida. Fui colocada ao lado de outras tantas bicicletas vermelhas, azuis e brancas.

Mas minha vida só começou mesmo quando subiram em mim pela primeira vez, um pai mostrando para a filha como se deve andar em uma bicicleta,  a filha me olhava como se eu fosse a pedra de diamante mais valiosa do mundo, depois foi a vez dela subir em mim, e me pedalar como se tivesse nascido sabendo andar de bicicleta, lembro como se fosse hoje, o pai disse, -se a bicicleta tombar para cá você vira pra cá, se a bicicleta tombar para lá voce vira pra lá... foi o suficiente par ela, depois que o pai me soltou ainda receoso, ela me pedalou estrada de barro afora enquanto gritava de emoção. Tenho certeza que os melhores momentos vividos por ela foram em cima de mim... claro que tenho certeza, ela tinha dez anos, e andava comigo todos os dias dentro do sítio do pai, mas quando ela fez quinze anos, ganhamos o melhor presente do mundo, asfaltaram a estrada de terra e aquele tapete se estendia por quilômetros à perder de vista... já logo  cedo, seis da manhã, ela me empurrava pelo gramado até a saída do sítio, subia em cima de mim e olhava para a esquerda e observava sua melhor amiga na banguela descendo a estrada embalada de empolgação, ela sabia o exato momento de pedalar e embalar, os pneus JetCaju sempre foram silenciosos, quando a brisa nos esfriava e já podíamos descer o restante do caminho na banguela o ruído dos gomos da bicicleta embalada nos alcançava, as melhores amigas faziam o trecho rotineiro todos os dias, desciam até a cidade para estudar, encontrar os amigos, ou passar horas e horas juntas, pedalando suas bicicletas. Vivi, a melhor amiga, não tinha bicicleta, usava uma monark ipanema da mãe, que tinha os pneus barulhentos, manga turbo, que para as estradas de terra eram uma beleza, mas para o asfalto recém colocado, incomoda as amigas.

Essa rotina durou quatro anos, foram os melhores anos que duas amigas já viveram nessa terra, e com esses anos, varias promessas. A última promessa, impossível de ser cumprida, melhores amigas prometeram que voltariam depois de terminarem a faculdade, nos tirariam do sótão e iriam pedalando até a cidade como fizeram durante os anos de adolescência. Não sei de qual delas foi a idéia, mas me subiram junto com a ipanema e nos acorrentaram juntas, cada uma delas ficou com sua cópia das chaves do cadeado e cada uma foi para viver seu destino universitário. 

O apagar de luzes foi eterno, por um momento perdi a noção dos dias e anos, só sentia a oxidação lenta do metal corroer as rodas, culpa da corrente velha que me prendia à monark ipanema, sempre tive um pouco de inveja dela, porque eu era ceci fiori, ela era ipanema série prata e tinha 4 marchas, além de ser sete anos mais velha que eu. Depois de um bom tempo nossos pneus murcharam, ela tombou em cima de mim e passamos anos nos apoiando  na escuridão sem fim.

Coincidência ou não,  agora, no começo do ano de 2023, abriram a porta do sótão e nos resgataram, não sei quem foi, não consegui ver nada por causa da poeira e da claridade, sei que tiraram minhas rodas e me transportaram por horas até alguém que gosta muito de bicicletas.

Ele me deu um banho, me senti em um verdadeiro paraíso de bicicletas, cada pedacinho meu recebeu os cuidados necessários para me devolver a vida, as rodas que estavam enferrujadas ganharam novos cromos, mas os pneus não tiveram tanta sorte, um não aguentou a pressão e estourou, me prometeram pneus novos, estou anciosa... me colocaram a venda, espero que quem me comprar, me leve pra passear todos os dias, mas eu queria mesmo era voltar a fazer o percurso do sítio até a escola e voltar na parte da tarde, encarar os carros passando ao nosso lado em alta velocidade, desviar dos buracos e das pedras e encarar as estradas de terra nos finais de semana, posso dizer que já fui a bicicleta mais feliz do mundo.

Texto: Amom Rodrigues Junior. 

Texto baseado em uma história real.